Do Sétimo Andar para uma Fazenda de Cacau

Contos da Pandemia

Essa é a história de Jamile e Dorian, um casal de capixabas que vivia em um belo apartamento de frente para o mar na Praia de Itaparica, cidade de Vila Velha no Espírito Santo. Em uma leitura rápida podemos concluir que a vida deles corria muito bem, em uma fase da vida com os 3 filhos criados, estáveis e ambos com mais de 60 anos. Entretanto, como ninguém esperava, veio a pandemia, e com ela confinamento, e sobretudo o medo de se contagiarem com o covid-19. Frente a tudo isso a solução imediata foi o refúgio no interior do estado. Mas, compensou a retirada, e afinal como anda a vida do casal três anos depois da mudança? Resolvi aceitar o convite que me fizeram e passei uns dias com eles para saber como foi essa mudança e como estão hoje.

Saída estratégica rumo ao Norte

“Acha que eu tinha estrutura para ficar em um 7º andar preso olhando as pessoas lá de cima?”

Era meados de Março de 2020 e a Europa já havia anunciado o confinamento, também conhecido pelo termo em inglês lockdown. Em alguns países as medidas foram mais duras do que em outros, mas o resultado era sempre o mesmo – Toda gente fica em casa. Os contágios não paravam de crescer, e com eles o gráfico com o número de mortos. Com uma carga diária de péssimas notícias vindas da Ásia e da Europa, já era previsto que logo o mesmo cenário de filme de hollywoodiano também iria se instalar nas cidades brasileiras, e no dia 20 de Março de 2020 o Ministério da Saúde declarou o estado de transmissão comunitária em todo o território nacional.

Jamile na altura já era professora aposentada, mas Dorian ainda servidor federal da ativa, ministrava aulas no IFES em Vitória. Nessa mesma época a direção do instituto resolveu que as aulas seriam online com o objetivo de proteger professores, alunos e funcionários de possíveis contágios, e foi nesse momento em que os dois se olharam e os pensamentos se alinharam. Já tinha passado da hora de sairem da cidade, e nesse mesmo dia arrumaram as malas, fecharam o apartamento em que viviam, e saíram rumo ao Norte do Espírito Santo, e o destino seria a cidade de Linhares que está localizada bem na foz do Rio Doce, aquele mesmo do trágico episódio que começou em Mariana-MG. É lá que eles possuem que propriedade que funcionava apenas como retiro de descanso apenas aos fins-de-semana, mas que agora seria a residência até tudo se resolvesse e voltasse ao que considerávamos normal.

Logo a entrada se vê a casa que ainda mantem a fachada original de quando foi inaugurada em 1963. Ali nada foi alterado, apenas restaurado. Por outro lado, o que estava em sua parte traseira foram feitas algumas obras de restauro e algumas alterações, onde agora existe uma sala e cozinha que ficaram com aspecto bem modernos.

No quintal próximo da vivenda ainda eles conservam as barcaças construídas pelo pai de Dorian. Trata-se de um terraço com um telhado móvel aonde na parte de baixo está um forno que serve para secar as semente de cacau. Todo o entorno da casa é lindo e aquele verde esperado de uma fazenda. A mata aonde estão os 7 mil pés de cacau é uma mistura de cacaueiro com uma parte ainda preservada de mata Atlântica, com variadas árvores, com destaque para os enormes jequitibás.

Entretanto, ter um sitio ou uma fazenda para utilizar como lazer é bem diferente de viver. Quando resolveram se estabelecer no local, aonde havia as árvores de cacau estava precisando de uma boa roçada, o pomar poderia expandir mais assim como a horta, sem esquecer que a casa ainda precisaria de alguns pequenos ajustes como um escritório para as aulas online.

Mãos à obra, mas sozinhos


A primeira medida não foi nada agradável, pois tiveram que demitir um dos funcionário que, apesar dos incansáveis pedidos  de não sair de casa, e de ter todas as necessidades mínimas asseguradas, como supermercado e farmácia, acabou por não respeitar a regra, e depois de uma furtiva ida ao boteco recebeu a notificação para ir embora no dia a seguir. Tanto Jamile como Dorian já tinham mais de 60 anos e não queriam correr o risco de serem contagiados pelo próprio trabalhador. 

O outro funcionário não foi preciso nenhuma notificação, pois ao perceber que os donos agora iriam residir na fazendo ele mesmo se demitiu, pois seus dias de “liberdade de horário laboral” se acabaram. Logo depois vieram a saber pelos vizinhos que o mesmo só lá aparecia 2 dias por semana. A partir daí ficaram sem ninguém, o que aumentou consideravelmente o trabalho na terra, que como mencionei precisava de ajustes.

Apesar de estarem sozinhos a fazenda dinamizou pouco a pouco. Antes tudo que plantavam tanto na horta como no pomar morriam, e essa foi logo a primeira invertida do jogo. As colheitas das frutas aumentaram significativamente com a presença permanente dos dois, e logo depois repararam que as até as galinhas davam mais ovos. Para fechar com chave de ouro a produção de cacau dinamizou tanto que alguns anos mais tarde ganharam um prêmio devido a boa qualidade do cacau. 

É possível viver exclusivamente do que produzem?


Hoje depois do fim do confinamento e com parte da população vacinada a fazenda voltou a ter mais um funcionário, e um pouco antes da minha visita ganhou mais um, o que podemos concluir que foi um enorme alivio na carga de trabalho dos dois, pois vinham tocando o barco sozinhos. As tarefas diminuíram obviamente, mas elas não ficaram mais suaves, e há sempre alguma coisa para fazer, e apesar de toda a beleza a volta da casa, acaba não sobrando muito tempo para o ócio. Recordo-me que às 5:30 da manhã já se ouvia alguém caminhando pela casas. Isso mesmo! Eles acordam nessa hora e começam suas atividades diárias bem cedo e sem reclamar.

Quando perguntei ao Dorian se o que produzem hoje chegaria para viver ele disse firmemente que nesse momento não. Ainda estar na ativa como professor de curso superior em Vitória (130 km) é o grande impedimento de explorar ainda mais o potencial de sua terra. Ele acredita que se não houvesse essa obrigação com o trabalho eles tirariam muito mais partido da propriedade e obviamente poderiam sacar mais dinheiro. 

“E recomendam que um casal de jovens troque a cidade para empreender no interior?” perguntei com curiosidade. “Claro que sim!”, responderam quase que em simultâneo. Hoje eles têm uma qualidade de vida muito melhor do que tinham na cidade, e com um custo de vida super reduzido, tendo apenas contas de gás, luz (rural é ainda mais barata) e Internet. A água é retirada de um poço, e no caso deles em especial a Internet é gratuita, pois o poste central que serve outras fazendas da região foi instalado ali na terra deles, e o acordo é não pagarem pelo serviço que custaria 150 reais mensais para a fibra ótica. Também mencionam que na roça se pode ter galinha, horta, pomar, tudo isso com um custo muito baixo.

Mas também afirmam que uma coisa é preciso saber – “aqui a dinâmica é outra, e não venham com a ideia de que terão tempo para desperdiçarem assistindo televisão no sofá, ou mesmo esses elementos que nos desconcentram da vida real como as redes sociais”. O que enfatizam é que ali é vida real e ativa, e sempre há algo para fazer ou algum problema para se resolver.

Por outro lado deixam um dica mais do que especial que se aplica em pequenas propriedades na região de Santa Maria do Jetibá, nas região montanhosa do Espírito Santo. O conceito parte de um princípio básico de não vender tudo que produz em bruto, ou seja, se planta morango venda a geleia de morango. Se tem coco no seu sítio, extraia o máximo de produtos da fruta ao invés simplesmente vendê-la em estado natural. Um litro de óleo de coco é muito mais que vender toda a quantidade de coco verde que precisou para manufaturar.

No caso deles em especial vendem banana; ovo; sacas de cacau extraídas de quase 7000 pés; e também produzem eventualmente o delicioso mel de cacau. A cotação da saca por vezes flutua bastante, assim como sua extração que tem sido sazonal, pois dependem sempre de mais alguém para a colheita e um trabalhador sai com uma diária de 70 reais na região. Claro que esse valor muda para contratos mais longos. A produção da fazenda varia entre 4 a 24 sacas mensais, do seu cacaueiro que agora tem árvores de 5 anos e meio. Segundo Dorian, o auge da produção é quando cacaueiro atinge 7 anos, o que está próximo de acontecer. Quando essa fase chegar ele poderá tirar duzentas sacas ao ano com uma colheita quinzenal, o que renderia hoje a volta de 160 mil reais anuais só com um segmento dos produtos que podem oferecer. 

Apesar do grande rendimento com as sacas, a minha grande surpresa foi saber que entre todas essas atividades econômicas que empreendem, a mais lucrativa que desde que se instalaram foi vender as mudas do cacaueiro, em especial a do PS1319. Esse é uma atividade que ele recomenda e adora.

Regressar ou ficar?

Quando perguntei se eles pensam em voltar para a cidade o que escutei foram sonoros Nãos. Apesar de todo o trabalho que tiveram e que ainda têm, eles querem dinamizar ainda mais o espaço para aumentarem a produção pouco a pouco contratando mais pessoal para trabalhar. Hoje ambos possuem uma vida mais dinâmica, se alimentam melhor,  o que resultou numa vida mais saudável e menos estressante. Estamos em Março de 2023, uma momento em que o  COVID-19 já está mais sob controle e a palavra pandemia já se dissipou das prosas diárias da população em geral, assim como a angústia que passamos do confinamento também vai se apagando devagarinho. Lembrando que esse foi o conjunto de fatores que levou Jamile e Dorian a se estabelecerem no campo, e apesar de toda a labuta que um grande pedaço de terra exige, não passa pela cabeça de nenhum dos dois trocar o lugar em que vivem hoje por aquele já esquecido 7º andar.

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